Fator Melquisedeque — Biblioteca LXVI

Fábio Ribas
6 min readSep 21, 2020

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Acredito que o “Fator Melquisedeque”, obra de Don Richardson, seja o melhor, o mais completo, instigante e desafiador livro já escrito para a missiologia até o seu tempo. O impacto que ele causa até hoje no meio missionário é estrondoso. O problema é que ele foi publicado em 1981! Qualquer leitura que se faça dele hoje precisará passar pelo crivo de sua datação. Sinceramente, creio que ele foi a mais audaciosa peça missiológica escrita em resposta às críticas da antropologia acadêmica e ao cientificismo daquela época. Compreendendo o que escrevo neste parágrafo, não há como passar incólume por esse autor e sua obra, que, ao lado de outras duas imperdíveis narrativas missionárias, a saber, “Totem da Paz” e “Senhores da Terra”, constituem-se como leitura obrigatória a todo apaixonado pela vida missionária.

Aos que me conhecem, principalmente os que passam pelas minhas salas de aula, sabem do impacto que “Fator Melquisedeque” teve na minha conversão em 1995. Havia feito Seminário para ser padre católico, mas, em determinado tempo, abandonei tudo para viver uma vida desregrada. Até que, no segundo semestre de 1993, ingressei na Faculdade Católica de Brasília para cursar Letras. Há muita água rolando debaixo desse testemunho, mas não é assunto para este texto, portanto, deixe-me ir direto ao ponto: em 1995, um missionário emprestou-me o “Fator Melquisedeque” para ler. Ao devolver o livro, eu disse: “Eu queria entender a Bíblia da mesma maneira que Don Richardson a compreende. Para ele, a Bíblia tem sentido na vida diária, na vida real. Eu já li a Bíblia diversas vezes, mas ela nunca fez sentido para a minha vida e para o mundo a minha volta como faz para Don Richardson” (veja, estamos falando de Cosmovisão). Por tudo isso, costumo dizer que o livro da minha conversão foi o “Fator Melquisedeque”. Quando conto isso, as pessoas acham graça que um livro missiológico possa ter sido “a isca” para me fazer ver a Bíblia de um modo diferente.

A tese mais popular do livro entre os missionários é o que o autor chamava de “abridor de olhos”. As culturas teriam elementos que fariam “pontes de contato”, para que o nativo conseguisse compreender o que seria o Evangelho. O tal “fator melquisedeque”, que dá título ao livro em português, a grosso modo, seria isso que acabei de explicar. Em inglês, o título original é muito mais poético: “Eternity in Their Hearts”, referência ao verso de Eclesiastes 3.11, em que se diz que Deus colocou a eternidade no coração dos homens. Lindo! Lindíssimo! Na tese de Don Richardson, Deus teria colocado nas culturas “o evangelho”, assim, caberia ao missionário pesquisar e descobrir “onde ele está”. Uma vez descoberto esse elemento, isso funcionaria como um “abridor de olhos”. Mas este é apenas um dos problemas que podemos encontrar no livro: a Bíblia não diz que Deus colocou o Evangelho nem no coração dos homens e nem nas culturas. O Evangelho é a revelação especial de Deus em Jesus, segundo as Escrituras.

Alguns outros problemas na abordagem de Don Richardson decorrem dessa premissa equivocada. Primeiro, ainda que se acreditasse na premissa de Don Richardson, dizer que “todas as culturas” teriam um abridor de olhos seria de um otimismo antropológico muito ingênuo. Segundo, imaginar que bastaria um “abridor de olhos”, para que o milagre do entendimento sobre o Evangelho se desse, é também de um simplismo teológico muito complicado. No afã da apologética, ao perceber a descoberta de “uns paralelos” entre as narrativas bíblicas e as histórias surpreendentes vistas nos mitos dos povos que ele conhecia, até imagino a empolgação de Richardson. Além disso, obviamente, o abismo entre os leitores atuais de Don Richardson e suas teses apresentadas no livro aumentam substancialmente dependendo da linha teológica de quem o lê.

O princípio de se estudar a cultura do povo para comunicar contextualmente o Evangelho permanece. O esforço missionário de aprender a língua, ouvir as histórias não no empenho de encontrar um “abridor de olhos”, mas de entender que a mensagem do evangelho pode se utilizar não de “analogias salvíficas” e nem de “pontes”, mas de “pontos de contato”, para, então fazermos uma apresentação inteligível em culturas tão diferentes não apenas daquelas de onde os missionários vêm, e, às vezes, muito diferentes das culturas que a própria Bíblia apresenta, enfim, todo esse bom dever de casa ainda encontra-se em Don Richardson.

Logo após a minha conversão, talvez uns três anos depois, tive a oportunidade de participar de um curso que me marcou profundamente. Era um curso sobre o tema das “analogias salvíficas” presentes na literatura luso-brasileira! Bárbaro, não? Uma Doutora americana que já tinha lido e conhecia mais dos autores brasileiros e portugueses do que eu mesmo, um brasileiro, que cursava Letras-literatura na Faculdade Católica. Ela nos apresentou a “analogia salvífica” em “Grande Sertão: Veredas”, em “O tempo e o vento”, no “Amor de perdição” e em tantas outras obras, mostrando como que essa semente religiosa estaria “plantada em nossos corações”. Ainda que você não tenha lido esses livros que eu citei, há outras obras mais populares que surpreendem com seus paralelos e que poderíamos aproveitar mais na educação de nossos filhos. Estou pensando nos clássicos a “Branca de neve e os sete anões”, “a Bela adormecida” e a “Bela e a Fera”, por exemplo. Em que, no final, o Bem sempre vence o Mal; há uma noiva, uma donzela em perigo, que foi sequestrada, enganada e “morta”, mas que há um príncipe que enfrenta todo os desafios para resgatá-la, salvá-la. Há muitas analogias nessas histórias, mas não salvíficas, porque só o Evangelho salva, por isso, a melhor expressão é “pontos de contato”, mas elas também mostram que, se essa saudade do divino não for satisfeita somente em Jesus, acaba essa própria saudade por se tornar a fonte de toda nossa idolatria. Toda essa reflexão precisava ser feita pelos missionários atentos.

Na aldeia, um dia de manhã, eu estava com o Cacique e sua família dentro da casa dele. Sentados em pequenos banquinhos de madeira, de repente, pela porta, vi um movimento lá fora, no centro da aldeia. Alguns indígenas carregavam panelas e as deixavam no chão, enquanto outros, cabisbaixos e com panos na cabeça, posicionavam-se ali no centro também. “O que está acontecendo?”, perguntei ao Cacique. O filho dele olhou e disse: “É konguinhe”! Continuei a olhar para fora e o filho do Cacique explicou: “Essa família estava de luto. Havia morrido parentes deles lá em outra aldeia. Por isso, eles estavam tristes e não podiam participar das festas da aldeia. Agora, eles vão fazer o konguinhe. Está vendo aquelas panelas? Estão com água. Fica olhando, professor”. Algumas pessoas vieram e colocaram suas mãos nas panelas, elevando as águas e derramando sobre a cabeça de cada parente da família enlutada. “Pronto!” — disse o filho do Cacique — “agora, eles já podem participar das festas. Eles agora estão felizes de novo. A tristeza ficou para trás. A morte se foi. Tudo se fez novo”! Acho que entendo bem Don Richardson. Imagine você a minha estupefação em ver em plena selva amazônica, no interior do Brasil, numa aldeia quase intocada pela nossa cultura, indígenas praticando o batismo com água. E mais! Um batismo presbiteriano (rsrsrs)!

Há muito mais no livro de Don Richardson. Há muito mais para se admirar e também para discordarmos, sem dúvida. A própria definição dele sobre o que é “revelação geral” e “revelação especial” é complicadíssima de ser sustentada, assim como a interpretação do que ele apresenta como “profeta” no livro. Leia e veja se você concorda comigo. Hoje, os meus óculos me permitem admirar Don Richardson e compreendê-lo no tempo dele, embora eu saiba pontuar os limites que o impediram de rever muito do que ele escreveu ali. Por exemplo, uma das suas afirmações no livro é que, em Atenas, no Areópago, Paulo errou na sua apresentação do Evangelho. Todavia, acredito que hoje eu já tenha conhecimento exegético, hermenêutico e cultural suficiente para saber do equívoco de Don Richardson numa afirmação como essa. Sobre outros pontos, tanto positivos, como negativos, deixo para conversar com meus alunos em sala de aula.

Quanto ao Konguinhe, veja que é um “batismo” que se repete sempre que haja o falecimento de alguém numa família e é preciso reinserir essa família na comunidade, após o período de luto. Eis um tema para se trabalhar.

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